Não tenho queixas da minha infância, tanto pela afetividade quanto pela realização dos meus desejos materiais.
Fui privilegiado.
Minha mãe não media esforços para preparar as guloseimas que eu mais gostava, incluindo os famosos "Camafeus Amarelinhos", espécie de brigadeiro branco, um docinho que ela sempre fez a cada 17 de julho, rodeando o bolo (sempre de chocolate) do meu aniversário.
Nada de coco, fruta que detesto.
Meu pai foi a figura mais doce e querida que conheci até hoje. Alguém que fazia absolutamente tudo para agradar e demonstrar carinho. Bem-humorado como um bom sagitariano, me fez rir por toda a vida, mesmo quando eu só queria chorar.
Ganhei todos os brinquedos que pedi ao Papai Noel, que tardiamente meu jeito sonhador de canceriano só foi descobrir que era mesmo o meu pai em um Natal triste, em que ganhei o meu primeiro relógio, um Orient cor de vinho que guardo com carinho até hoje.
Autorama, Vertiplano, Piloto Campeão, Eletrodiversões, a Ilha dos Thunderbirds e Automatma, entre outros, fora as muitas bolas de futebol e os carros e carrinhos que me distraíam por horas no sobradinho em que morávamos, na Rua das Palmas, 115, na Vila Guilherme. Minha casa favorita.
Ah, e também o meu telescópio, que ganhei em 1980 do meu pai e hoje está montado na minha sala, com o qual vejo sempre as crateras da Lua pela janela do meu quarto, e ainda os anéis de Saturno, os satélites galileanos de Júpiter e as Plêiades, aglomerado de estrelas na constelação do Touro.
Mas também tive dois outros brinquedos que foram especiais, que me tornavam um projetista de carros de Fórmula 1: os "Pinos Mágicos", ainda fabricados, e o "Poli", versão raiz que precedeu o gourmetizado "Lego".
Da minha lavra pueril saíram alguns carros de Fórmua 1 até que bem ajambrados.
Tanto os "Pinos Mágicos" quanto o "Poli" eram brinquedos baratos, muito mais acessíveis que o contemporâneo "Lego".
Montava e desmontava meus carros com as mais variadas cores e lamentava que nem os "Pinos Mágicos" nem o "Poli" disponibilizavam o laranja, matiz do meu carro favorito, a March do Vittorio Brambilla.
Eu achava, que se não fosse jogador de futebol ou piloto de Fórmula 1, seria projetista de carros.
Quando descobri que teria de ser craque em matemática - muito mais do que eu era fazendo embaixadinhas -, desisti da ideia.
Porém, em uma noite de 1978, meu pai abriu sua mala preta de couro ao chegar do escritório de publicidade que comandava e me entregou uma revista diferente, que não era a "Quatro Rodas" ou a "Placar", aquelas que ele sempre trazia pra mim, a primeira com edição mensal e a segunda semanal.
A revista que ele me trouxe naquela noite deliciosa foi a "Recreio" (extinta em 2018), uma publicação infanto-juvenil que eu conhecia, e já tinha tido algumas.
A "Recreio" era uma diversão e tanto mesmo, com suas páginas de papel grosso em que podíamos destacar figuras e montar objetos.
Aquela especial era inteiramente dedicada a uma única coisa: o Copersucar F5-A, carro de Fórmula 1 da equipe de Wilsinho e Emerson Fittipaldi.
Fui destacando cada pedaço do carro e seguindo as instruções.
Ele era lindo e muito perfeito em todos os detalhes, incluindo o nome do patrocinador principal e os secundários, o motor V8 da Ford-Cosworth, os aerofólios e os pneus.
Caprichei na montagem como se aquele carro tivesse que rumar para Interlagos e acelerar pelos então 7.823 metros do circuito.
Ele não foi para Interlagos.
Claro, um carro de papel não poderia durar muito tempo em cima da estante da sala, lugar que escolhi para ele, ao lado do vaso longo de cristal da minha mãe, mas foi uma das melhores lembranças que guardo dos meus tempos de criança.
Depois, montei vários kits da Revell, a linda Ligier JS11 que está perfeita e até já decorou a mesa do dia em que gravei meu "Bella Macchina" com o grande jornalista Castilho de Andrade em setembro do ano passado, e também uma Ferrari Dino, um Porsche Carrera e um Maverick.
Tenho um kit na caixa, que por enquanto apenas montei o motor, de uma Mercedes 300SL.
Preciso comprar as tintas especiais e a cola plástica.
Curiosamente, sempre que vejo um kit para montar, incluindo essa Mercedes que um dia estará pronta, lembro do meu Copersucar F5-A de papel.
E, no último sábado (25), ele voltou a povoar minhas boas lembranças, pois foi o dia em que o projetista Ricardo Divila morreu.
Engenheiro de primeira, com 276 GPs de F1 nas costas, trabalhando pela Copersucar, Ligier, Minardi e Fondmetal, Divila projetou os quatro primeiros carros da Copersucar e, ainda na equipe, melhorou o mal nascido F5 transfrmando-o no bom F5-A, o meu carro de papel da Revista Recreio.
Foi o F5-A, justamente ele, o responsável pela atuação espetacular de Emerson Fittipaldi no GP do Brasil de 1978, em Jacarepaguá, terminando a corrida em segundo lugar, atrás apenas da Ferrari do argentino Carlos Reutemann.
Encontrei Ricardo Divila algumas vezes em Interlagos, mas sempre naquela correria, e ele morando na França, em um sítio pertinho de Magny-Cours, onde ficava a sede da Ligier e o lindo autódromo gaulês
Assim, era complicado eu conseguir arrumar um jeito de trazê-lo para gravar o meu Bella Macchina na redação do Portal Terceiro Tempo.
Eu tinha essa vontade e cheguei a comentar isso com ele na última vez em que o vi.
Ele disse que iria com o maior prazer.
Para meu espanto e alegria, revelou que tinha assistido vários "Bella Macchina", citando aqueles que fiz com o Bird Clemente e o Alex Dias Ribeiro.
Sou apaixonado pela Ligier, e como ele trabalhou lá, este seria um dos assuntos, certamente.
Não deu tempo.
Lutou contra um câncer no pâncreas e ainda teve um AVC. Se foi aos 74 anos.
Eu iria decorar a mesa com a Ligier para homenageá-lo, mas lembraria da história do meu Copersucar F5-A de papel, aquele que montei com tanto amor, da Revista Recreio.
O carro, que na verdade, era dele.
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